domingo, 24 de novembro de 2013

Satélite Natural









Satélite Natural

-Chá gelado na madrugada não é algo que me agrada, sabe.
Diz Ana no chat de um site de relacionamento, se despedindo em seguida do seu amigo de longe com quem conversa há anos. É como se fossem dois irmãos nascidos em famílias diferentes.
Senta no sofá ao lado da cama no seu quarto. Ela gosta do sofá ali, por mais que sua mãe já tenha dito para jogar fora o sofá velho, diz gostar dele, olha para o relógio na escrivaninha, mostra serem três horas da madrugada.  
Um vento frio sopra fora da casa. Pela janela enxerga um vestígio da lua. Os fantasmas do amor invadem sua mente. Envolvem-na poemas de Baudelaire, embriaga- lhe o resto de vinho sobre a mesinha do computador.
Ri da sua própria desilusão, pega um canetão na sua mochila e desenha na parede do quarto correntes com tinta vermelha. Desenha correntes por todo o seu corpo; Pernas, braços, mãos, pescoço, busto... E semblante. A corrente termina no seu coração num desenho sobreposto no local onde se localiza o órgão que bombeia sangue para todo o seu corpo: no centro do peito. Chora com lágrimas misturadas a com rímel pela face.
O seu coração dói. Dói muito e Ana adormece deitada no tapete do quarto.
O natal se aproxima. A árvore montada na sala com suas luzes piscas- piscas relembra sua infância, seus momentos bons com o pai que falecera dois anos atrás. A saudade bate forte, o coração dói novamente. No mais profundo do seu coração, espera que seu pai esteja vivendo na lua, lugar que seu pai lhe disse várias vezes que queria conhecer. Ás vezes deitada no sofá da sala olhando as luzes pisca-pisca na árvore, principalmente as amarelas imagina seu pai no satélite natural, jogando xadrez com São Jorge, enquanto o segundo conta como enfrentou o dragão do crepúsculo de sua vida. E ri de si mesma imaginando coisas tão loucas, tão loucas para sua idade: 15 primaveras. Algo dentro de si considera metade desses anos, anos de inverno.
-Não quero falar sobre isso!
Desconversa, quando um amigo de sala de aula pergunta por que perto do seu pescoço tem correntes desenhadas com canetão vermelho.
A mesma aula de sempre. A professora ensinando aparentemente por obrigação. Já deve ter se conformado com o baixo salário, perdeu a vontade de dar aula, não tem mais aquele brilho no olhar do começo com pura vontade de ensinar. Não quer correr o risco de tentar outra profissão, mas, não quer mais se dar 100% ao difícil trabalho de ensinar aborrecentes com hormônios a flor da pele.  Não quer voltar para casa mais cansada do que deveria. Ana lê seu livro no canto da sala, concentrada no romance, rabisca uma ou outra corrente na última matéria do caderno.
Os prisioneiros no campo.
Os pães estão quentes.
O homem sem dentes morreu sem ir para a Lua.
O chamavam de homem santo.
Alguns de homem doente.
Dos frutos do jardim, escolheu a macieira.
No dia 17 de Julho encontraram seu corpo na rua
Caído, quente (frio) junto a jornais e revistas velhas.
Os prisioneiros voltam para suas casas.
Os pães são devorados
E fazem amor com suas mulheres na alvorada.

Ana não sabe muito bem por que escreveu algo que não condiz exatamente com a realidade. Seu pai não viveu na época da guerra, mundial, civil, ou, o que seja. Seu pai não era mendigo, seu pai tinha todos os dentes (ou, melhor quase todos havia extraído um na ultima consulta ao odontologista). A data condiz com a realidade, morto em julho por ladrões, ou, não foi assim que aconteceu? Ela não se lembra de direito desse dia e não quer perguntar para as pessoas. Fica triste quando lembra que seu pai era mendigo de amor da mãe em muitos sentidos. Fica triste em saber que seu pai era prisioneiro do trabalho para sustentar a família, todo dias fazendo pães e mais pães logo cedo, más, não fazia amor com frequência com a esposa.  Apesar de tudo fazia com amor seus pães e sorria sempre.
- Por que tu pensa tanto nele ainda Ana, mesmo tendo passado tanto tempo?
Ela não sabe responder ao seu amigo João quando fala do seu dia para seu amigo virtual e diz doer ainda nunca ter sido correspondida pelo grande amor de sua vida. Grande como todos os amores dos poemas mais belos que existem.
Ana não percebe que as correntes estão crescendo na mente de João que são vermelho puro sangue.
-Vamos fugir João?
-Fugir para onde?
- Dizer o lugar, não é fugir. Fugir é sumir não importa para onde.
Sem esperar resposta, saí da internet, pega chá quente na cozinha. Senta na sala e durante um bom tempo fica observando as luzes na árvore de natal. Sente tristeza, alegria, nostalgia, esperança, desesperança. Esse ano pelo terceiro ano consecutivo montou a árvore sozinha sem ajuda do pai.
-Existe diferença Ana entre gostar e sentir atração. Se ele diz que gosta de você, mas, também gosta de outra garota, bom, ele apenas sente atração por você. Gostar é mais que isso. É adentrar dentro de você e ver as maravilhas do mundo mesmo que por um breve instante. Sabe, Ana, sua mãe e eu... Bem, a gente dorme em camas separadas, você sabe disso, muita gente sabe, não sei se realmente ela já me amou se tivesse amado se lembraria da intensidade e não da dor. Lembrar-se-ia dos momentos bons do quanto me conheceu. Não sei Ana. Fico pensando nisso e só.
Fazia frio quando conversaram sobre isso na varanda da casa quando sua mãe havia saído com as amigas para o Shopping e seu pai ficou com ela conversando a tarde toda. Dia inesquecível. Fazia frio como o faz hoje. Muito frio e seu coração dói.
Ela se encolhe no sofá, encosta os joelhos no peito, diz baixinho:
-Sinto sua falta pai.
O homem da lua fazia pães todos os dias, macios, gostosos e os clientes gostavam dele, sentem saudades dele. Ele gostava de ficar atualizado sobre o mundo, li jornal todo dia e revistas. Ás vezes queria poder saber o que iria acontecer no dia de amanhã apenas para ajudar as pessoas, mas, não conseguia ajudar a si mesmo. O Natal era importante para ele, foi quando soube da gravidez da mulher e decidiu dar o nome da profetisa que reconheceu Jesus como Messias no Novo Testamento.
A vida perdeu a graça para Ana.  O chá não era apenas chá.
No computador ainda ligado, João chama sua atenção no chat:
-Ana, tá tudo bem? Ainda está aí? Tu ouviu? Eu disse que fujo sim com você.
O homem da Lua nunca soube o dia de amanhã.





By: Bruci J. Fermandes 

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