Trilho do trem.
Os olhos são o espelho da alma.
Silvia pensava sobre isso, enquanto caminhava pelos trilhos
do trem, tateando cada barra de ferro e pedra com a bengala, confiando
plenamente na sua audição. Não temia a morte, temia a vida. Sabia que era
diferente das outras pessoas. Sabia que
a linguagem dentro de sua cabeça era diferente das pessoas comuns. Que aprendeu
de forma diferente, que seus outros sentidos são mais aguçados. Algumas pessoas diziam o quanto ela é
inteligente e tinha facilidade para aprender as coisas, o quanto diziam que era
bonita, principalmente sua boca e cabelos. Por um lado era bem feliz, por outro
não era. Seriam todos assim? Não conhecia o amor, o amor romântico, apenas
conhecia o amor da mãe, do pai que faleceu quatro anos atrás.
As memórias surgem, sentada, no alto do morro, sabendo que o
trilho ficou lá embaixo e que o trem estava passando lento, serpenteando como
ferro na brasa, lembra-se do pai. O querido
e amado pai.
Quando ela tinha 10 anos,
trouxe para ela uma caneca com sabão e um circulo de arame enrolado com
algodão, lhe ensinou a soprar para formar bolhas de sabão. Ela não conseguia
ver as bolhas, no começo se sentiu desconfortável, não entendia por que seu pai
deu aquele presente no seu aniversário. Que
graça tinha? Que sentido fazia bolhas coloridas pelo raio do sol se seus olhos
viam apenas as trevas? Até que aos poucos foi entendendo. Seu sopro, seu pulmão
ajudava a formar as bolhas, o vento as levava para longe, ás vezes parecia até
mesmo ouvir os estouro da bolha no ar, seu pai dizia sempre o quanto as bolhas
eram bonitas, que ele não conseguia fazer bolhas tão bonitas quanto ela, nem
sua mãe conseguia. Ele falava sobre o azul de algumas, do contraste com o
vermelho do pôr do sol que sentavam para ver à tarde. Ela não via nada, vi
apenas trevas, mas, seu pai a fazia ver a cor da sua própria alma, a
sensibilidade dela.
Não nasceu cega, com três anos de idade perdeu a visão num
acidente com uma forte pancada na cabeça no acidente de carro que mudou sua
vida. Teria mudado seu destino? A lembrança do mundo agora era vaga. Não sabia
exatamente como eram as cores. A única cor viva na sua memória quatorze anos
depois era o azul do céu, à última coisa que viu antes da perca visão.
Por outro lado, conseguia ouvir o galhofar das folhas mesmo
com as leve brisas de outono. Por mais
que goste das mais variadas músicas, a maior parte do tempo passa escutando os
sons do mundo.
“A vida é uma canção”
seu pai dizia, e realmente era. Ela aprendeu a notar isso aos poucos à medida
que foi aprendendo a conhecer as pessoas por sua voz, a forma que suspiravam
como eram seus passos. Ela sabia que não
podia julgar as pessoas por isso, mas, sabia que conseguia sentir o coração das
pessoas. Mesmo assim não conhecia o amor. Estava sozinha.
O seu pai fazia falta, sua mãe trabalhava muito. Sozinha,
ficava em seu quarto, quando saía do colégio, ou, saía passear sozinha apesar
da preocupação da mãe.
-Se realmente os olhos são o espelho da alma, como poderei
conhecer a verdadeira índole das pessoas? Como poderei reconhecer o amor? Perguntava-se
na tarde caindo. Sabia que não deveria fazer isso, mas, jogou uma pedra que
estava perto dos seus pés longe. Poderia machucar alguém, mas, decidiu correr o
risco disso, provavelmente estaria sozinha naquele lugar. Sempre estava.
-Merda, quem é o filho da p...?
Silvia assustada não sabia o que dizer, ficou envergonhada,
aparentemente havia acertado alguém.
O jovem não terminou de falar, imediatamente viu Silvia no
alto do morro, sentada, assustada olhando para baixo, mas, parecia não saber exatamente
para onde. O susto abalou momentaneamente seus sentidos. Ela falou alto pedindo desculpas, se a pessoa
havia se machucado.
-Espera!
Ele decidiu ir até ela. Subiu o morro devagar.
-Posso sentar ao seu lado? O que está fazendo aqui em cima?
Mesmo antes que ela respondesse, já tinha sentado e antes
mesmo que a segunda perguntava tivesse sido respondida fez outra pergunta:
-Como subiu aqui se você é...? Parou o que ia dizer.
-Cega você iria dizer não é?
-Desculpa!
-Não se preocupe.
-Conheço você de vista, as pessoas te conhecem. Silvia não
é?
-Sim e você?
-Paulo.
Respondeu o jovem. Ele pediu desculpas por ter quase a ofendido,
pensou que tinha sido algum moleque desocupado que ás vezes joga pedras no trem
quando este passa. Conversaram a tarde
toda. Um falou da vida do outro, cúmplice daquele momento mágico de outono. Ele
via os pássaros pousarem e levantarem voo dos galhos das árvores, enquanto ela
ouvia o som dos pés tocando os galhos e das asas levantando o voo. Ambos chamaram a vida dos pássaros de
liberdade. Ela disse que pretendia quando atingisse a maior idade tatuar asas
nas suas costas, ele por sua vez que pretendia tatuar olhos abertos, os olhos de Hórus. Ela queria
a liberdade da escuridão, ele queria a liberdade dos seus olhos que via muito e
entendia pouco da vida.
-Os olhos são o espelho da alma... Silvia disse baixinho.
-Talvez! Disse Paulo e acrescentou: - Eu prefiro acreditar
que o coração é uma caixa de Pandora cheia de demônios para alguns, enquanto
para outros é um oceano de esperanças que apenas o toque das mãos é capaz de
conhecer.
Ela ouvia, ele via o trem passar lá embaixo novamente nos
trilhos, enquanto algumas crianças jogavam pedras na caçamba deste do outro lado
do morro.
By: Bruci JFernandes